O resultado dessa prática medieval de tortura é brincadeira de pirralho se comparada ao semblante dos
coitados que frequentam as Igrejas desses neo-vigaristas. Basta ligar a televisão a qualquer hora do
dia ou da noite para conferir a pasta informe em que essa gente é transformada.
Nenhuma usurpação foi tão brega, nem tão ostensivamente picareta e poderosa. Bispos, pastores,
apóstolos. Uma legião de assombrações medievais passa o dia inteiro fazendo malabarismos na
televisão. A má fé é tão explícita que chega – no mínimo – a constranger. Eu fico constrangido.
Tem um cara que usa um chapelão de caubói e faz cadeiras de rodas voarem de sua Igreja como se fossem
pipocas numa panela quente. Você olha aquilo, e pensa: eu não compraria um carro usado desse sujeito.
Como é que ele pode curar paralíticos? Outro parece que está lidando com crianças do pré-primário
(metido a paizão), ele é todo delicadeza ao ensinar os trouxas a pagarem o dízimo pela intercessão do
Senhor Jesus e através de abençoados boletos bancários. No Código Penal, isso tem nome: estelionato.
Têm uns que dissimulam ataques epiléticos, enrolam a língua e atribuem o “idioma” ao Espírito Santo.
Só falam português claro na hora de enfiar a mão na carteira dos incautos. Inacreditável. E têm
aqueles que usam cintos e sapatos brancos, que se dizem ex-pais de santo convertidos à palavra do
Senhor. Sem falar nas versões pagode, rap, axé e o diabo a quatro que desfilaram na Marcha para
Jesus. Que tristeza.
Cadê o Ministério Público?
Igrejas, estádios de futebol, praças, ex-cinemas lotados. A “bispa” Sônia Hernandez e o seu marido, o
“apóstolo Estevam”, são a síntese de todos eles. São de amargar: a estimativa da PM sugere que um
milhão de trouxas marcharam com o pobre Jesus diretamente do Campo de Marte para a conta corrente do
casal condenado por contrabando de dinheiro. Até nas fraldas do netinho da bispa encontraram bufunfa
sonegada. E se a PM estimou um milhão, podem contar pelos menos três ou quatro milhões de alucinados
pagando para ser enganados … pelo diabo. Quem mais?
Existe um estudo que diz que, dentro de dez anos, metade da população brasileira será neopentecostal.
Sabem o que isso quer dizer?
Que 99% da outra metade estará pastando em cercadinhos politicamente corretos. E o 1% restante (
estou sendo otimista) será discriminado, censurado e perseguido. Trevas.
Nem preciso falar que essa gente não tem um pingo de humor. Eles trazem a corrupção, o bafio podre de
suas alminhas vendidas lá nos quintos dos infernos diretamente para os horários comprados na
televisão – e lotam seus templos diabólicos. Na maior cara de pau, distorcem as palavras do pobre
Jesus como se aleijassem suas parábolas. Maldita bíblia que parece que foi escrita para ser mal
interpretada.
O Jesus da bispa Sônia não paga imposto. Às vezes ele se trai e deixa de pregar gentilezas para
efetivamente latir, quer comprar o mundo e não faz questão de esconder a volúpia. Ou é na base do
amém, ou na base da porrada. Os estelionatários gritam, ameaçam, têm os melhores advogados. Anotem.
Se a justiça dos homens não frear imediatamente a ambição desses malucos fundamentalistas, as trevas
virão mais sombrias e ameaçadoras do que no tempo dos esmagadores de crânios medievais.
E o pior de tudo: eles enfeiam suas mulheres, as destituem de tesão e as transformam em urubus
encalacrados – extirpam o clitóris de suas almas submissas. Põem suas filhas para estudar nas Unibans
da vida. O Jesus deles caminha sobre um mar de merda, e reproduz peixes que morrem por falta de ar e
na ignorância plena da breguice e da feiúra eternas. Sinceramente, dá medo.
Uma carta enviada ao Painel do Leitor da Folha de S. Paulo, por Vanderlei de Lima, da cidade de
Amparo-SP, traduz esse horror em poucas palavras. Eu acho que esse cara é um gênio. Sem querer, ele
encerrou toda essa lenga-lenga religiosa e traduziu as verdadeiras intenções desses picaretas que
arrastam legiões de otários para o obscurantismo e a conta corrente deles. A carta fala do Sudário de
Turim. Vejam só.
“A propósito da notícia veiculada em 7/10 dizendo que o Santo Sudário seria invento medieval, devo
notar que compete mesmo à ciência investigar essa peça arqueológica, tida como a mortalha de Cristo,
como vários cientistas o fizeram, concluindo pela sua veracidade. Contudo, mesmo se verdadeira, a
peça será sempre um apêndice para a fé na ressurreição corporal do Senhor Jesus, pois esta não se
fundamenta em relíquia nenhuma, mas na palavra de Deus. Caso o milagre da ressurreição fosse uma
fraude, tal fraude, que já dura 20 séculos, seria mais milagrosa do que o próprio fato da
ressurreição em si.”
FRAUDE! Taí a lógica escarrada dos neopentecostais. Embora o Sudário seja uma relíquia (leia-se
picaretagem católica), a engrenagem da trapaça é a mesma. A leitura é a seguinte: somos uns
estelionatários, picaretas, contrabandistas, mentirosos e filhos da puta, mas também somos a prova
viva de que Jesus
* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em
Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos
casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor
de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três
pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.
Outros textos do colunista Marcelo Mirisola*
TEXTO: MARCELO MIRISOLA
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